Setusa, uma 'revolução' no transporte público de João Pessoa

A cidade de João Pessoa comemora 435 anos nesta quarta-feira, 5 de agosto, com muita história para contar. Uma das lições que a terceira capital mais antiga do Brasil pode dar diz respeito à força do povo. Em 1988, também em agosto, manifestações populares pressionaram o governo a criar um serviço de transporte urbano acessível, o Setusa.
    Naquela época, os índices de inflação estavam muito altos e os preços de serviços essenciais passavam por constantes variações. Em janeiro, a passagem subiu de 8,50 para 12 cruzados. Os preços foram se modificando nos meses seguintes e, em agosto, a tarifa já custava 36 cruzados, de acordo com o pesquisador Enver José Lopes Cabral.

    Usuários dos transportes coletivos, sobretudo estudantes, se revoltaram e realizaram manifestações por três dias consecutivos. Em um dos protestos, cerca de 50 ônibus foram apedrejados e queimados no Centro da cidade. Por causa da pressão popular, o então governador Tarcísio de Miranda Burity instituiu o Serviço Estadual de Transporte Urbano (Setusa), com o lema ‘Decisão do Governo, Patrimônio do Povo’.

    O historiador e cientista político Flávio Lúcio Vieira era presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) na época das manifestações. Hoje ele é professor da mesma instituição e, em conversa com o Portal Correio, recorda a atuação do movimento estudantil no fim da década de 1980.
    O movimento estudantil estava numa crescente naquela época e havia uma grande insatisfação com a política. A inflação era muito alta, o preço das passagens aumentava praticamente todo mês. Em agosto, quando a Superintendência de Transporte Público (STP) se reuniu e aprovou nova tarifa, foi a gota d’água. 
    O primeiro protesto aconteceu em 16 de agosto, dia seguinte ao novo aumento das passagens. Foram convocados estudantes universitários e secundaristas. Em 17 de agosto, mais pessoas aderiram à mobilização. Com as aglomerações maiores, surgiram os conflitos. As ações de alguns manifestantes acabaram fugindo do controle das lideranças do movimento.

    “Houve quebra-quebra e o presidente do Sindicato dos Empresários apareceu armado com um revólver, atirando para cima. Aquilo dispersou um pouco a manifestação, mas o protesto seguiu. Em dado momento, atearam coquetel molotov em dois ônibus”, recorda.

    O ato assustou os empresários, que ordenaram o recolhimento dos ônibus no dia seguinte. Até o arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, demonstrou preocupação com a situação. Acontece que com a retirada dos ônibus das ruas, outros grupos se juntaram aos manifestantes.

    “As pessoas queriam trabalhar, e não tinham como, então houve grande aglomeração na Lagoa. Foi quando a Polícia Militar interveio. Eles tinham policiais infiltrados no movimento para que as lideranças fossem identificadas. Nesse dia, o terceiro de protestos, a polícia impediu a saída da passeata. Apreenderam o carro de som e ameaçaram prender as lideranças. Eu só não fui pego porque estava próximo às escadarias do Lyceu Paraibano, vi quando as abordagens começaram e consegui correr, com ajuda de colegas”, lembra Flávio Lúcio.

    Os manifestantes continuaram aglomerados no Centro da cidade até que uma negociação com a polícia permitiu que a passeata seguisse. O acordo deixava de fora o uso do carro de som. Lideranças do movimento argumentaram que os ônibus precisavam voltar a circular, caso contrário as pessoas não teriam como retornar para suas casas depois do protesto e isso inflamaria ainda mais os ânimos. A liberação da frota, no entanto, não apaziguou nada, como conta Flávio Lúcio.
    Quando as pessoas viram os ônibus, elas atacaram. Havia um sentimento de revolta muito grande e o que aconteceu foi um descontrole. Dezenas de ônibus foram depredados, apedrejados e queimados. A situação fugiu do controle da liderança, nem como estabelecer uma comunicação com o grupo nós tínhamos, devido à ausência do carro de som.
    Manifestantes apedrejam e tentam derrubar ônibus em 18 de agosto (Foto: Acervo/Jornal CORREIO)
    O protesto convenceu o governo de que o melhor a fazer seria atender às reivindicações. No dia seguinte, 19 de agosto, o governador Tarcísio de Miranda Burity revogou o último aumento das passagens, congelou os preços e anunciou a criação do Setusa. “Essa foi, sem dúvidas, uma das maiores conquistas do movimento estudantil na Paraíba”, analisa Flávio Lúcio.
    Burity cria Setusa em 1988 (Foto: Acervo/Governo do Estado)

    Concorrência com o setor privado

    O Setusa cobrava preços mais baratos que os ônibus privados e estudantes tinham direito à gratuidade, desde que estivessem usando uniforme escolar. As linhas circulares eram outra vantagem do sistema público. Elas faziam trajetos intra-bairros, enquanto que os transportes privados faziam percursos ‘Centro-bairro’. Antes da implantação dos circulares, os passageiros precisavam pegar dois ônibus, pagando duas tarifas, para chegar a determinado destino.

    Não demorou muito até que o Setusa começasse a incomodar as empresas privadas. Os empresários do setor de transporte eram contra a existência da estatal e reclamavam da queda nos lucros. De acordo com matéria divulgada pelo Jornal Correio da Paraíba em agosto de 1989, um ano após a criação do Setusa, a Transnacional, a maior empresa privada em atuação na cidade, queria do governo um subsídio que compensasse a sua redução de faturamento. O Setusa tinha sete linhas e as empresas privadas ofereciam, juntas, 50.
    “A Transnacional teve perda de 30% dos passageiros nos últimos 9 meses e reduziu em 12% a sua frota de operação. Antes do Setusa, a Transnacional transportava 100 mil passageiros/dia, quantia que desceu para 70 mil/dia, atualmente. Até outubro do ano passado, ele tinha 76 veículos em operação e, hoje, está com 67”.  
    Trecho de publicação do Correio da Paraíba

    Sucateamento da frota e privatização de linhas

    Da fundação à extinção, o Setusa operou com os mesmos 50 veículos. Isso porque os governos posteriores à instituição do sistema, Ronaldo Cunha Lima (1991-1994) e José Maranhão (1995-1998), não renovaram a frota e realizaram apenas reparações nos ônibus adquiridos pelo governo Burity.

    Estudiosos acreditam que o Setusa foi propositalmente sucateado para que sua desativação fosse justificável. Os governos de Ronaldo Cunha Lima e José Maranhão divulgavam com frequência que o serviço era muito caro e dava prejuízo ao Estado, embora fossem contestados pela própria administração do serviço.

    “Aos poucos, o Setusa foi perdendo sua presença nas ruas e isso era fruto do compromisso do governo com os empresários”, avalia o historiador Flávio Lúcio.

    Em 1996, o Setusa operava com 32 ônibus, enquanto que 18 veículos quebrados permaneciam recolhidos no pátio sem manutenção. A terceirização do serviço foi anunciada como uma “vitória da Paraíba”. O Jornal A União, veículo do governo, publicou em 7 de maio de 1996 que os usuários ganhariam “um novo e moderno serviço, graças à compreensão do empresariado”. Seis das sete linhas da estatal foram concedidas à Transnacional e uma à Mandacaruense.
    Ônibus sucateados pátio do Setusa (Foto: Acervo/Jornal A União)
    O pesquisador Enver José Lopes Cabral, na dissertação Transporte Coletivo e Espaço Urbano: contradições, conflitos e mobilização social em João Pessoa-PB, faz apontamentos sobre a interferência de empresários na decisão do Estado de desativar o Setusa.

    “O Setusa estava diminuindo o lucro das empresas privadas, como a Transnacional. As linhas de ônibus do Setusa foram aos poucos concedidas à iniciativa privada, com a concretização da terceirização dos serviços em 6 de maio de 1996”, analisa Enver José. “A classe empresarial não aceita o funcionamento de um sistema de transporte coletivo que ameace sua acumulação de riqueza”, reforça, em outro trecho do estudo.

    De acordo com a pesquisa, publicada em 2014, o fim do Setusa beneficiou diretamente a família Pereira do Nascimento, dona das empresas Transnacional, São Jorge e Reunidas. Para o pesquisador, o fim do Setusa está diretamente relacionado ao controle do transporte coletivo urbano pela família Pereira do Nascimento.
    “A década de 1990 é marcada pela formação do oligopólio dos transportes, fruto do poderio dos empresários. Os ônibus da antiga Setusa vão quase todos para as linhas da Transnacional e para a São Jorge, ambos da família Pereira do Nascimento. A mesma família que questionou, por meio da Transnacional, a redução da frota de ônibus em 30% com a criação do Setusa. O oligopólio do transporte, constituído ao longo dos anos, chega a 2014 com 83% das linhas de ônibus concentrados na família Pereira do Nascimento, número extremamente elevado se compararmos que esta mesma empresa, em 1993, possuía cerca de 30% das linhas”.
    Enver José

    Linhas do Setusa

    • 1500 (circular) – concedida à família Pereira do Nascimento
    • 5100 (circular) – concedida à família Pereira do Nascimento
    • 3200 (circular) – concedida à família Pereira do Nascimento
    • 2300 (circular) – concedida à família Pereira do Nascimento
    • 601/Bessa – concedida à família Pereira do Nascimento
    • 1001/Mandacaru – concedida à Mandacaruense
    • 305/Mangabeira – desativada

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