Usuários dos transportes coletivos, sobretudo estudantes, se revoltaram e realizaram manifestações por três dias consecutivos. Em um dos protestos, cerca de 50 ônibus foram apedrejados e queimados no Centro da cidade. Por causa da pressão popular, o então governador Tarcísio de Miranda Burity instituiu o Serviço Estadual de Transporte Urbano (Setusa), com o lema ‘Decisão do Governo, Patrimônio do Povo’.
O historiador e cientista político Flávio Lúcio Vieira era presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) na época das manifestações. Hoje ele é professor da mesma instituição e, em conversa com o Portal Correio, recorda a atuação do movimento estudantil no fim da década de 1980.
O primeiro protesto aconteceu em 16 de agosto, dia seguinte ao novo aumento das passagens. Foram convocados estudantes universitários e secundaristas. Em 17 de agosto, mais pessoas aderiram à mobilização. Com as aglomerações maiores, surgiram os conflitos. As ações de alguns manifestantes acabaram fugindo do controle das lideranças do movimento.O movimento estudantil estava numa crescente naquela época e havia uma grande insatisfação com a política. A inflação era muito alta, o preço das passagens aumentava praticamente todo mês. Em agosto, quando a Superintendência de Transporte Público (STP) se reuniu e aprovou nova tarifa, foi a gota d’água.
“Houve quebra-quebra e o presidente do Sindicato dos Empresários apareceu armado com um revólver, atirando para cima. Aquilo dispersou um pouco a manifestação, mas o protesto seguiu. Em dado momento, atearam coquetel molotov em dois ônibus”, recorda.
O ato assustou os empresários, que ordenaram o recolhimento dos ônibus no dia seguinte. Até o arcebispo da Paraíba, Dom José Maria Pires, demonstrou preocupação com a situação. Acontece que com a retirada dos ônibus das ruas, outros grupos se juntaram aos manifestantes.
“As pessoas queriam trabalhar, e não tinham como, então houve grande aglomeração na Lagoa. Foi quando a Polícia Militar interveio. Eles tinham policiais infiltrados no movimento para que as lideranças fossem identificadas. Nesse dia, o terceiro de protestos, a polícia impediu a saída da passeata. Apreenderam o carro de som e ameaçaram prender as lideranças. Eu só não fui pego porque estava próximo às escadarias do Lyceu Paraibano, vi quando as abordagens começaram e consegui correr, com ajuda de colegas”, lembra Flávio Lúcio.
Os manifestantes continuaram aglomerados no Centro da cidade até que uma negociação com a polícia permitiu que a passeata seguisse. O acordo deixava de fora o uso do carro de som. Lideranças do movimento argumentaram que os ônibus precisavam voltar a circular, caso contrário as pessoas não teriam como retornar para suas casas depois do protesto e isso inflamaria ainda mais os ânimos. A liberação da frota, no entanto, não apaziguou nada, como conta Flávio Lúcio.
O protesto convenceu o governo de que o melhor a fazer seria atender às reivindicações. No dia seguinte, 19 de agosto, o governador Tarcísio de Miranda Burity revogou o último aumento das passagens, congelou os preços e anunciou a criação do Setusa. “Essa foi, sem dúvidas, uma das maiores conquistas do movimento estudantil na Paraíba”, analisa Flávio Lúcio.Quando as pessoas viram os ônibus, elas atacaram. Havia um sentimento de revolta muito grande e o que aconteceu foi um descontrole. Dezenas de ônibus foram depredados, apedrejados e queimados. A situação fugiu do controle da liderança, nem como estabelecer uma comunicação com o grupo nós tínhamos, devido à ausência do carro de som.
Concorrência com o setor privado
O Setusa cobrava preços mais baratos que os ônibus privados e estudantes tinham direito à gratuidade, desde que estivessem usando uniforme escolar. As linhas circulares eram outra vantagem do sistema público. Elas faziam trajetos intra-bairros, enquanto que os transportes privados faziam percursos ‘Centro-bairro’. Antes da implantação dos circulares, os passageiros precisavam pegar dois ônibus, pagando duas tarifas, para chegar a determinado destino.Não demorou muito até que o Setusa começasse a incomodar as empresas privadas. Os empresários do setor de transporte eram contra a existência da estatal e reclamavam da queda nos lucros. De acordo com matéria divulgada pelo Jornal Correio da Paraíba em agosto de 1989, um ano após a criação do Setusa, a Transnacional, a maior empresa privada em atuação na cidade, queria do governo um subsídio que compensasse a sua redução de faturamento. O Setusa tinha sete linhas e as empresas privadas ofereciam, juntas, 50.
“A Transnacional teve perda de 30% dos passageiros nos últimos 9 meses e reduziu em 12% a sua frota de operação. Antes do Setusa, a Transnacional transportava 100 mil passageiros/dia, quantia que desceu para 70 mil/dia, atualmente. Até outubro do ano passado, ele tinha 76 veículos em operação e, hoje, está com 67”.
Trecho de publicação do Correio da Paraíba
Sucateamento da frota e privatização de linhas
Da fundação à extinção, o Setusa operou com os mesmos 50 veículos. Isso porque os governos posteriores à instituição do sistema, Ronaldo Cunha Lima (1991-1994) e José Maranhão (1995-1998), não renovaram a frota e realizaram apenas reparações nos ônibus adquiridos pelo governo Burity.Estudiosos acreditam que o Setusa foi propositalmente sucateado para que sua desativação fosse justificável. Os governos de Ronaldo Cunha Lima e José Maranhão divulgavam com frequência que o serviço era muito caro e dava prejuízo ao Estado, embora fossem contestados pela própria administração do serviço.
“Aos poucos, o Setusa foi perdendo sua presença nas ruas e isso era fruto do compromisso do governo com os empresários”, avalia o historiador Flávio Lúcio.
Em 1996, o Setusa operava com 32 ônibus, enquanto que 18 veículos quebrados permaneciam recolhidos no pátio sem manutenção. A terceirização do serviço foi anunciada como uma “vitória da Paraíba”. O Jornal A União, veículo do governo, publicou em 7 de maio de 1996 que os usuários ganhariam “um novo e moderno serviço, graças à compreensão do empresariado”. Seis das sete linhas da estatal foram concedidas à Transnacional e uma à Mandacaruense.
O pesquisador Enver José Lopes Cabral, na dissertação Transporte Coletivo e Espaço Urbano: contradições, conflitos e mobilização social em João Pessoa-PB, faz apontamentos sobre a interferência de empresários na decisão do Estado de desativar o Setusa.
“O Setusa estava diminuindo o lucro das empresas privadas, como a Transnacional. As linhas de ônibus do Setusa foram aos poucos concedidas à iniciativa privada, com a concretização da terceirização dos serviços em 6 de maio de 1996”, analisa Enver José. “A classe empresarial não aceita o funcionamento de um sistema de transporte coletivo que ameace sua acumulação de riqueza”, reforça, em outro trecho do estudo.
De acordo com a pesquisa, publicada em 2014, o fim do Setusa beneficiou diretamente a família Pereira do Nascimento, dona das empresas Transnacional, São Jorge e Reunidas. Para o pesquisador, o fim do Setusa está diretamente relacionado ao controle do transporte coletivo urbano pela família Pereira do Nascimento.
“A década de 1990 é marcada pela formação do oligopólio dos transportes, fruto do poderio dos empresários. Os ônibus da antiga Setusa vão quase todos para as linhas da Transnacional e para a São Jorge, ambos da família Pereira do Nascimento. A mesma família que questionou, por meio da Transnacional, a redução da frota de ônibus em 30% com a criação do Setusa. O oligopólio do transporte, constituído ao longo dos anos, chega a 2014 com 83% das linhas de ônibus concentrados na família Pereira do Nascimento, número extremamente elevado se compararmos que esta mesma empresa, em 1993, possuía cerca de 30% das linhas”.
Enver José
Linhas do Setusa
- 1500 (circular) – concedida à família Pereira do Nascimento
- 5100 (circular) – concedida à família Pereira do Nascimento
- 3200 (circular) – concedida à família Pereira do Nascimento
- 2300 (circular) – concedida à família Pereira do Nascimento
- 601/Bessa – concedida à família Pereira do Nascimento
- 1001/Mandacaru – concedida à Mandacaruense
- 305/Mangabeira – desativada
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